Home office sob vigilância: até onde vai o poder de controle do empregador?
A recente decisão do Itaú de desligar aproximadamente mil colaboradores que atuavam em regime remoto ou híbrido, após mais de seis meses de monitoramento digital, reacendeu um debate fundamental: até que ponto o empregador pode acompanhar a produtividade sem violar a privacidade do trabalhador? Segundo o Sindicato dos Bancários, a medida se baseou em registros de inatividade em computadores corporativos (em alguns casos, períodos de quatro horas ou mais sem atividade detectada). O banco, por sua vez, justificou a decisão como resultado de uma “revisão criteriosa de condutas relacionadas ao trabalho remoto e registro de jornada”, destacando padrões incompatíveis com princípios de confiança, considerados inegociáveis.
Mais do que um caso isolado, o episódio revela um dilema global. A consolidação do trabalho remoto e híbrido ampliou a necessidade de novas formas de acompanhamento. Com menos contato físico entre gestores e equipes, empresas recorrem a softwares especializados, como por exemplo, o Hubstaff, Teramind, Time Doctor e XOne, os quais registram cliques, tempo de uso de sistemas, sites acessados e até capturas de tela automáticas. Algumas ferramentas chegam a medir geolocalização e padrões de digitação para identificar fraudes. Esse nível de detalhamento, ainda que tecnológico, levanta dúvidas éticas e jurídicas sobre os limites da fiscalização.
O que a lei permite?
O direito do empregador de monitorar a atividade está assegurado pela CLT. Os artigos 75-A a 75-E, inseridos pela Lei nº 13.467/2017 (conhecida como Reforma Trabalhista), regulamentam o teletrabalho, preservando a subordinação jurídica, enquanto o art. 2º reafirma o poder diretivo da empresa. Em outras palavras, mesmo fora do espaço físico, cabe ao empregador organizar, controlar e fiscalizar a prestação de serviços.
O controle pode abranger e-mails corporativos, aplicativos como Teams e Slack, e até mesmo o WhatsApp Web quando acessado em computadores da empresa, sempre com o objetivo de garantir segurança da informação e produtividade. Da mesma forma, a navegação na internet em redes corporativas pode ser verificada. O limite, contudo, é claro: contas pessoais, dispositivos privados e ambientes da vida íntima do empregado não podem ser fiscalizados.
LGPD e os deveres de transparência
O monitoramento só é legítimo se obedecer aos princípios da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD – Lei nº 13.709/18). Isso implica nas seguintes obrigações:
- informar ao empregado, desde o início da contratação ou da adoção da prática, quais dados serão coletados, com que finalidade e como serão tratados;
- limitar a coleta ao estritamente necessário para a execução do contrato;
- garantir mecanismos de segurança para evitar vazamentos;
- respeitar os direitos do trabalhador de acessar, corrigir e questionar o uso de seus dados.
Sem essa transparência, o risco de responsabilização é elevado, tanto perante a Justiça do Trabalho quanto perante a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD).
Produtividade x jornada: o novo conflito
O episódio do Itaú também coloca em foco uma tensão que tende a crescer: a lei brasileira é estruturada para controlar tempo de trabalho, mas as empresas cada vez mais medem resultados. Registros de inatividade em computadores, sem atividade de teclado ou mouse, podem indicar descompromisso em funções operacionais, mas dizem pouco sobre trabalhos criativos ou analíticos, cujo valor está na qualidade e não na repetição de movimentos.
É sempre um risco de confundir “movimento” com “produtividade”. Um colaborador pode estar pensando, lendo ou criando, atividades que não geram cliques ou digitações, mas que são essenciais para entregas complexas. Por isso, a mensuração deve combinar indicadores quantitativos (volume de chamados, tempo de resposta, NPS) com métricas qualitativas (inovação, qualidade, valor agregado).
Transparência e confiança como pilares
Para que o monitoramento seja visto como ferramenta de gestão e não como ameaça, três pilares são necessários para uma relação de trabalho saudável:
- Transparência — comunicação clara e escrita sobre os critérios de avaliação.
- Proporcionalidade — coleta de dados apenas no que for necessário.
- Confiança mútua — mecanismos que protejam a privacidade e assegurem respeito à dignidade do trabalhador.
Com efeito, sem esses elementos, a supervisão digital corre o risco de se tornar vigilância abusiva, com repercussões jurídicas, reputacionais e até criminais.
Um debate global
O tema não é exclusivo do Brasil. Em 2024, o Wells Fargo, nos Estados Unidos, demitiu funcionários após descobrir o uso de dispositivos que simulavam atividade em home office. Grandes corporações como Amazon, Dell, Goldman Sachs e JPMorgan já exigem presença física integral ou majoritária, alegando necessidade de maior controle e integração. Em contrapartida, empresas como Spotify apostam em modelos flexíveis, priorizando confiança e autonomia.
No Brasil, segundo pesquisa da Deel em parceria com a Opinion Box, 51% das empresas já retornaram ao regime totalmente presencial, enquanto 45% mantêm o híbrido. A disputa entre modelos revela um cenário em transformação: quem não souber alinhar liberdade com responsabilidade, confiança com métricas objetivas, ficará para trás.
Conclusão: maturidade como diferencial competitivo
O avanço das tecnologias de monitoramento exige que empregadores e trabalhadores amadureçam sua relação com o trabalho remoto e híbrido. O verdadeiro desafio não está apenas em medir produtividade, mas em construir um ambiente de confiança mútua, onde a transparência sobre os dados coletados e o respeito à dignidade do trabalhador coexistam com a legítima necessidade empresarial de gerir e avaliar resultados.
O futuro do trabalho não será definido por softwares de rastreamento ou métricas de cliques, mas pela capacidade das organizações de cultivar uma cultura baseada em propósito, confiança e responsabilidade, equilibrando performance com bem-estar. As empresas que compreenderem isso sairão à frente, não apenas por alcançarem melhores resultados, mas por consolidarem ambientes de trabalho mais produtivos, éticos, inovadores e sustentáveis.
Rafael Souza | Advogado de Di Ciero Advogados