Reflexões sobre o julgamento RE666.094-DF: A necessária harmonia entre o público e o privado nas ações e serviços de saúde
No dia 30/09/2021, o Supremo Tribunal Federal julgou o Recurso Extraordinário 666.094-DF, fixando regras para pagamento de serviço hospitalar, imposto por força de decisão judicial.
A importância do tema mereceu o tratamento sob o regime de repercussão geral, possibilitando a manifestação de entidades interessadas (amicus curiae) sobre o mérito da causa, tendo o resultado do julgamento sido alcançado por unanimidade.
O caso diz respeito à ação de cobrança ajuizada por empresa de seguro de saúde privado objetivando o ressarcimento, em face do Distrito Federal, dos custos de serviços médicos urgentes prestados em favor de pessoa física, não beneficiário de assistência médica complementar e sem vaga no atendimento da rede pública, por força de decisão judicial.
A questão sob julgamento, assim, opôs, de um lado a empresa de serviços de saúde, reclamando pelo ressarcimento dos serviços prestados pelo preço ordinário por ela praticado no mercado; e, de outro lado, o ente público, pugnando pela remuneração dos serviços, mas pelo preço de remuneração dos hospitais privados credenciados pelo SUS (i.e. “Tabela SUS”), evitando distinções sem amparo em lei.
Concluiu o Supremo Tribunal Federal, finalmente, por unanimidade, pelo acolhimento da tese defendida pelo Distrito Federal, estabelecendo que “o ressarcimento de serviços de saúde prestados por unidade privada em favor de paciente do Sistema Único de Saúde, em cumprimento de ordem judicial, deve utilizar como critério o mesmo que é adotado para o ressarcimento do Sistema Único de Saúde por serviços prestados a beneficiários de planos de saúde”.
O voto do eminente Ministro Roberto Barroso, que foi acompanhado por todos os demais membros do Tribunal, está à altura do assunto, pela excelência de sua fundamentação, suscitando, como natural consequência, significativas reflexões que transcendem a seara jurídica, tocando questões fundamentais sobre nossa sociedade, a gestão pública de serviços e recursos e o próprio papel do Estado.
Sob a perspectiva jurídica, podemos afirmar que o julgamento faz refletir sobre a garantia da livre iniciativa, a tensão entre os regimes público e privado, entre a política e o direito, segurança jurídica, judicialização, direitos fundamentais, dentre outros. E nesse contexto fértil à reflexão, pretendemos destacar duas questões suscitadas pelo julgamento, a saber: a excepcionalidade paradoxal da conclusão e os caminhos para sua superação.
O voto no Ministro Barroso é claro em identificar, no caso, uma tensão entre a garantia da livre iniciativa e da propriedade privada, de um lado, e as prerrogativas do poder público para a intervenção na propriedade privada, de outro. Também não deixa dúvidas de que a medida judicial determinada está apoiada em regra jurídica expressa e veiculada em lei (Lei 8.080/1990, art.15, inciso XIII), esclarecendo sua finalidade de atender necessidades coletivas, urgentes e transitórias, decorrentes de situações de perigo iminente, afastando o contraponto do ativismo judicial.
A questão é que há o risco de a exceção tornar-se regra, ante a omissão histórica da política institucionalizada em solucionar o problema, revelando um paradoxo e naturalizando-se a impossibilidade de cumprir harmonização entre os setores público e privado na prestação dos serviços de assistência à saúde, tal como proclamada constitucionalmente (arts. 196, 197 e 199). É possível deduzir dos fundamentos do julgamento esse apelo, pois que a judicialização da questão, nessa perspectiva, merece maior destaque enquanto denúncia (do problema) do que a sua solução (que, conforme evidenciado pelo julgamento, a solução transcende os limites do jurídico).
Nesse sentido, o julgamento, ao demonstrar que aplicou o direito ao caso valendo-se do recurso da analogia, evidencia que o litígio poderia ser evitado se suprida a lacuna legal mediante a edição de legislação específica, a partir do estabelecimento de procedimentos e parâmetros adequados para apuração do valor indenizatório para tais casos excepcionais. Ainda, demonstra que a causa da judicialização da questão é exatamente a mitigação, pela omissão do Estado, da garantia do direito à saúde, omissão esta que, por sua vez, justifica a intervenção estatal excepcional, concluindo, assim, um ciclo vicioso.
Concluímos, portanto, com o apelo que extraímos do aludido julgamento para que seja superada a realidade paradoxal e seus efeitos negativos e obstativos do nosso desenvolvimento, cumprindo o Estado com seu dever de prover a assistência à saúde, serviço público não privativo, inclusive provendo as condições de sua operacionalidade, com a dimensão e significado impostos pela Constituição Federal, como condição prévia fundamental para a viabilidade da atuação da livre iniciativa no setor (complementar ou suplementar).
Cid Pereira Starling | Advogado de Di Ciero Advogados nas áreas de Direito Administrativo, Direito Processual Civil, Direito Civil e Direito da Tecnologia da Informação e Comunicação.
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