Processar empresas aéreas se tornou lucrativo no Brasil e fez crescer a litigiosidade no setor

No último dia 25 de maio, o Conselho Nacional de Justiça realizou o webinário “O Setor Aéreo Brasileiro: Caminhos para a Redução da Litigiosidade”, ocasião em que foi lançada a “Cartilha Digital do Transporte Aéreo”, reunindo informações acerca dos direitos e deveres dos passageiros de empresas aéreas.

A realização do evento foi muito festejada pelas empresas aéreas e suas associações, que tiveram participação ativa no evento, junto com magistrados, representantes da Anac, Senacon e Ministério Público.

O objetivo: discutir mecanismos para reduzir a judicialização no setor.

O motivo: o Brasil é o país que concentra o maior número de ações judiciais de passageiros contra empresas aéreas do mundo. Mais de 98,5% das ações estão aqui, segundo dados do IBAER (Instituto Brasileiro de Direito Aeronáutico).

Entender as causas que tornam o Brasil um pária no assunto é, sem dúvida, relevante para contornar o problema.

Não passou despercebida a crítica de alguns magistrados às empresas aéreas, incomodados com que se atribua ao Judiciário a responsabilidade por esse alto índice de judicialização. De fato, seria não apenas injusto assim pensar, mas subestimar este importante debate, que precisa ter um espectro bem mais amplo.

Segundo estas críticas, as empresas aéreas deveriam parar de recorrer sobre matérias sobre as quais os precedentes estão já assentados; tampouco haveria de se falar em decisões aplicando dano moral punitivo, conflito de norma ou seu descumprimento. O vício do serviço leva à responsabilização e o mau serviço prestado pelas empresas aéreas seria a razão para tantas demandas.

Para iluminar o debate, os índices apresentados pela Anac demonstraram que a aviação brasileira é muito eficiente, mais até que em alguns países desenvolvidos. O esclarecimento prestado pela Anac, do motivo por que o regulador entendeu necessário e relevante impôr ao passageiro a obrigação de comunicar que, apesar de ter adquirido um bilhete round trip e não ter utilizado a ida, pretende ainda usar o trecho de retorno, foi emblemático: é preciso conhecer o setor, suas especificidades e, claro, sua regulação.

Adicionalmente, se nas instâncias superiores as cartas estariam já na mesa, nos Juizados Especiais Cíveis espalhados Brasil afora, em que tramita o maior número destas demandas, são muitos os exemplos de decisões onde os precedentes não foram considerados, a regulação da Anac e as convenções internacionais, ignoradas e banalizado o dano moral.

Reflexo dessa mercantilização é o crescente número de startups especializadas em captar e angariar clientela para causas contra as empresas aéreas, comprometendo-se inclusive a antecipar o valor da indenização que o passageiro receberia ao processar a companhia aérea.

Empresas contratam até influencers para fazer propaganda de seu negócio, em atuação que viola frontalmente o Estatuto de Ética da OAB (Lei 8.906/1994), exigindo intensa atuação no combate à advocacia predatória e de estímulo à litigiosidade. Segundo a OAB, foram mais de 60 aplicativos desta natureza notificados, com destaque para a recente vitória em ação civil pública movida pela seccional fluminense da OAB contra a LiberFly.

Por isso é preciso que todas as partes envolvidas façam sua reflexão, sendo relevantes os seguintes aspectos discutidos no evento do CNJ:

(i) é preciso que o Judiciário e os passageiros conheçam mais sobre a regulamentação da Anac, o Código Brasileiro de Aeronáutica e as particularidades do setor;

(ii) existem decisões que não seguem a jurisprudência dos tribunais superiores e a legislação especial sobre transporte aéreo, sendo necessário uniformização por parte das instâncias inferiores para maior segurança jurídica;

(iii) nosso sistema dos Juizados Especiais Cíveis, sem custas e sem condenação em honorários, é um convite a demandar judicialmente? Estudo mencionado no evento revelou que as classes mais altas são as que mais utilizam os juizados especiais cíveis, revertendo a lógica constitucional de acesso à justiça para as classes mais baixas (e por isso gratuito). É preciso refletir sobre o tema e a eventual necessidade de mudança. Deveríamos seguir modelos que imponham pagamento aos que perdem, para que nenhuma das partes exija mais do que aquilo a que tem direito ou resista a uma pretensão sem justa causa? Deveríamos rever a gratuidade irrestrita?

(iv) devem ser fortalecidos os SACs das empresas aéreas e todos os demais meios de composição amigável entre passageiros e companhias aéreas, como forma de diminuir a judicialização;

(v) o Judiciário deve cumprir seu papel de garantir estabilidade jurídica às relações;

(vi) deve ser combatida a mercantilização das indenizações e a banalização do dano moral no transporte aéreo, para que o Brasil possa atrair novos investimentos e novos players ao setor.

O Brasil tem todo o potencial necessário para se tornar um gigante da aviação e, juntos, devemos caminhar para alcançar este objetivo, que tantos benefícios econômicos, sociais e culturais traz à população.

Que sejamos capazes de criar um ambiente de estabilidade para atrair novas empresas aéreas ao mercado brasileiro, ao invés de lawtechs especializadas em demandas contra empresas aéreas.

Luisa Medina | Sócia de Di Ciero Advogados

Nicole Villa | Advogada de Di Ciero Advogados

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